Fonte: Folha de S. Paulo (por Guilherme Boulos 03.11.2016)
Embalados pela vitória nas eleições municipais, expoentes do conservadorismo –no Planalto e na planície– passaram a celebrar o declínio da esquerda brasileira. O povo, enfim, teria compreendido o fracasso dos projetos da esquerda, que estaria então aproximando-se de um desfecho melancólico.
Os que celebram hoje são os mesmos que, vinte anos atrás, brindavam o fim da história como uma verdade inexorável. A história, teimosa que é, insistiu em contrariá-los e produziu um ciclo de governos progressistas na América Latina. São os mesmos também que, com sua crença fervorosa numa certa “mão invisível”, prometeram paraísos no mercado de futuros e o que conseguiram entregar foi a crise de 2008. É preciso ter cuidado com os vaticínios dessa gente.
De fato, a esquerda brasileira enfrenta uma crise. Crise que marca o fechamento de um ciclo. O Partido dos Trabalhadores, impulsionado em seu surgimento por grandes lutas populares, construiu uma hegemonia na esquerda nos últimos 35 anos. Seu período à frente do governo federal foi marcado por avanços sociais, mas também por descaminhos estratégicos.
Os avanços foram inegáveis: valorização progressiva do salário mínimo, expansão do crédito popular, inclusão dos mais pobres na universidade, programas sociais, redução das desigualdades regionais. Avanços que deram ao PT três reeleições sucessivas, só sendo apeado do poder por um golpe parlamentar.
Mas o preço pago pelo “consenso petista” foi abrir mão do enfrentamento aos privilégios históricos da Casa Grande. Achou que poderia aprofundar um projeto de avanços de mãos dadas com os donos do Brasil. Abriu mão de pautar reformas estruturais, como a tributária, agrária ou urbana. Acreditou que teria sempre a sustentação dos partidos conservadores no Congresso, usando dos velhos métodos, e –ao deixar de mobilizar a sociedade por uma transformação do sistema político– acabou tragado por ele.
Na primeira grande oportunidade que tiveram, a Casa Grande e seus partidos acabaram com a brincadeira. Deixaram claro que, no Brasil, não há espaço para um programa de avanços sociais sem reformas estruturais e sem enfrentamento. O PT, diga-se, não morreu, mas envelheceu nesse processo. Seu futuro dependerá de ter ou não a capacidade de aprender essa dura lição.
Mas é preciso lembrar que a esquerda brasileira não se reduz ao PT. Nem aos partidos, sem deixar de destacar o importante papel que o PSOL tem cumprido com sua aguerrida bancada e com candidaturas contra-hegemônicas. A esquerda representa, em tempos de desilusão, a esperança de milhões de pessoas por igualdade social e por participação política radicalmente democrática. Isso não é patrimônio de um partido político. Está nos movimentos sociais e nas lutas de resistência.
A esquerda saberá se renovar. Já o está fazendo, com os estudantes ocupando escolas, com os sem-teto, as iniciativas de mídia livre nas redes, a luta das mulheres, a luta pela diversidade sexual, o movimento negro. Cedo ou tarde, esse caldo dinâmico de mobilização social irá se traduzir num projeto político. Política autêntica, que nasce e se faz nas ruas.
O maior desafio é retomar esta relação viva com as ruas e, em especial, com o povo das periferias. Acolher suas demandas, estar junto em suas lutas e não trair suas esperanças. Os que preferem dedicar-se a resmungos amargos nas redes sociais contra a “ingratidão” ou a “alienação” do povo mostram apenas não estarem à altura da tarefa. O reconhecimento das dificuldades atuais precisa vir junto com o aprendizado das lições sobre o processo que nos trouxe até aqui.
Certa vez, Jean Paul Sartre, questionado sobre o “fim do marxismo”, disse que o marxismo só poderia ser superado quando fossem superadas as condições que o engendraram, ou seja, a divisão de classes sociais no capitalismo. O mesmo vale para a situação atual da esquerda no Brasil e na América Latina: enquanto nossa sociedade permanecer profundamente desigual, crivada por privilégios e privações, haverá lutas de resistência, haverá esquerda.
Ainda mais por aqui, ante um governo que –sem a legitimidade do voto popular– começa a impor um programa devastador de retrocessos sociais e trabalhistas. A perplexidade da maioria tem prazo de validade, mesmo quando apoiada num poderoso discurso midiático. A história, novamente, não acabou.
Os que comemoram hoje, com sua felicidade estampada na “Caviar Life Style”, saibam que a velha toupeira continua a cavar.